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OCUPAR PARA TRANSFORMAR

Na UFG, uma professora tem inovado no ensino de jornalismo ao integrar dados, tecnologia e justiça racial. Por meio da pesquisa e da extensão, ela forma estudantes para enfrentar a desinformação e ampliar a presença negra na comunicação e na ciência.

Texto por: Iasmin Feitosa

 

No cruzamento entre jornalismo, tecnologia e justiça social, a professora Mariza Fernandes, da Universidade Federal de Goiás (UFG), tem se destacado como uma voz firme na luta por uma comunicação mais ética, inclusiva e comprometida com os direitos humanos. Mulher negra, pesquisadora e docente do curso de Jornalismo, ela atua na formação de novos profissionais com olhar crítico e domínio das ferramentas digitais, especialmente no campo do jornalismo de dados e da checagem de fatos.

 

m3Foto 1: Prof.ª Dr.ª Mariza Fernandes, professora efetiva da UFG empossada em 2023. Arquivo pessoal,

 

Sua trajetória acadêmica é marcada pela superação de barreiras impostas pelo racismo estrutural e pela ausência de diversidade nas universidades e nas ciências. Ingressou na graduação por meio do programa UFGInclui — ação afirmativa criada antes da lei de cotas — e, desde então, construiu uma carreira que atravessa diferentes áreas do conhecimento, como a Geografia e a Comunicação, sempre guiada pelo interesse em compreender e transformar a realidade social por meio dos dados.

Em suas aulas, projetos e pesquisas, a professora articula temas como ações afirmativas, desinformação, relações étnico-raciais e tecnologias da informação. Um dos exemplos mais emblemáticos desse esforço é o projeto de extensão OJU, voltado à formação de estudantes em jornalismo de dados e verificação de fatos, com ênfase na defesa da equidade racial no ecossistema informacional. A iniciativa mostra como é possível unir teoria, prática e compromisso social dentro da universidade pública.

Nesta entrevista, ela compartilha os caminhos que a levaram até aqui, os desafios de ser uma mulher negra atuando em áreas historicamente dominadas por homens brancos e as estratégias que acredita serem fundamentais para ampliar a presença de meninas e mulheres negras nas ciências, na comunicação e nas tecnologias. Mais do que uma conversa sobre trajetórias acadêmicas, esta é uma reflexão potente sobre pertencimento, resistência e transformação:

 

IASMIN FEITOSA: Professora, como foi o início da sua trajetória acadêmica e profissional nas áreas de jornalismo? Houve algum momento decisivo que a levou a se especializar em jornalismo de dados e checagem de fatos?

MARIZA FERNANDES: Eu comecei minha trajetória na graduação em Jornalismo em 2009. Faço parte da primeira turma de estudantes cotistas da UFG, ainda antes da lei de cotas, quando a universidade criou o programa UFG Inclui — um programa de ações afirmativas voltado para estudantes negros de escolas públicas, indígenas e quilombolas.

Concluí a graduação em 2013 e decidi permanecer na universidade. Não consegui ingressar na pós-graduação em Comunicação. Participei do processo seletivo, fui aprovada em quase todas as etapas, mas acabei sendo eliminada na fase de entrevista — uma etapa menos técnica, digamos assim.

Acabei fazendo mestrado e doutorado em Geografia na UFG, o que me proporcionou um olhar mais amplo para as questões sociais. Foi nesse contexto que comecei a perceber como o processo de coleta e análise de dados é essencial, por exemplo, para a criação e o monitoramento de políticas sociais. Isso despertou meu interesse pelo papel dos dados na compreensão de fenômenos sociais — foi meu primeiro contato mais direto com esse tema.

Posteriormente, ingressei como docente no curso de Jornalismo, em um momento em que havia o interesse de fortalecer a área de novas tecnologias no curso. A vaga para a qual fui aprovada era voltada à produção de texto jornalístico e jornalismo de dados. Decidi então fazer uma especialização em jornalismo de dados, que estou concluindo agora, e desde então tenho me dedicado mais a essa área.

O que motivou a criação do projeto de extensão OJU, e como ele contribui para o enfrentamento das desigualdades raciais na comunicação?

O projeto OJU surgiu justamente como uma forma de colocar em prática os conhecimentos trabalhados na disciplina de jornalismo de dados. Infelizmente, o curso de Jornalismo atualmente não oferece muitas disciplinas voltadas a essa área. Os estudantes cursam a disciplina, mas sentem a necessidade de continuar produzindo e aprofundando seus conhecimentos em jornalismo de dados — que dialoga fortemente com rotinas de checagem de fatos e combate à desinformação, todos alinhados ao uso de novas tecnologias e à plataformização do jornalismo.

O jornalismo de dados tem uma conexão muito próxima com as tarefas de checagem e com o enfrentamento à desinformação. Assim, o projeto foi pensado como um espaço de formação para os estudantes atuarem com jornalismo de dados, checagem e combate à desinformação, mas também como uma forma de extensão: um modo da universidade contribuir com a sociedade, ajudando a preservar a integridade do ecossistema informacional.

Ao longo da sua caminhada como pesquisadora e educadora, quais foram os principais desafios que enfrentou por ser uma mulher negra atuando em áreas historicamente dominadas por homens brancos?

Sendo uma mulher negra na universidade, os desafios são muitos. Eles vão desde o racismo direto, que enfrentamos no cotidiano e em sala de aula, até formas mais veladas, como o que aconteceu no processo seletivo de mestrado, quando fui eliminada na entrevista.

Hoje, atuando na área de novas tecnologias em comunicação, percebo claramente como as pessoas se surpreendem por eu estar nesse campo e não apenas falando sobre racismo, gênero ou mulheres negras. Falo sobre essas questões, sim, mas dentro de uma perspectiva tecnológica — um espaço em que, historicamente, as pessoas não estão acostumadas a ver mulheres negras.

A senhora costuma trabalhar com temas ligados às ações afirmativas e às relações étnico-raciais. Como essas pautas se conectam com o universo das tecnologias da informação e da comunicação?

Desde o surgimento das ações afirmativas, especialmente as cotas para pessoas negras nas universidades, há uma forte presença da desinformação tentando deslegitimá-las. Isso permanece até hoje. Inclusive, estamos atualmente trabalhando na checagem de uma matéria publicada por um jornal que disseminou informações falsas sobre o sistema de cotas nas universidades.

Por isso, é fundamental que utilizemos as novas tecnologias da informação e comunicação e as ferramentas de checagem de fatos — que exigem rigor técnico, ética e comprometimento. Essas ferramentas são essenciais para fortalecer políticas públicas como as ações afirmativas.

Vivemos um contexto de hiperdatificação da sociedade. Muitos dados são produzidos e compartilhados diariamente, e o acesso e análise desses dados permitem avaliações importantes dessas políticas. Um exemplo foi a reportagem que publicamos no Jornal UFG no mês passado, mostrando que, nos últimos 14 anos, o número de pessoas negras na UFG aumentou cinco vezes — ou seja, 500%. Só conseguimos publicar essa reportagem porque a UFG mantém uma política de dados abertos, o que permitiu analisar o perfil racial dos estudantes de graduação entre 2010 e 2024.

Quais barreiras ainda precisam ser superadas para que meninas e mulheres negras se sintam pertencentes e atuantes nas áreas de ciência, tecnologia e inovação?

Acredito que a primeira barreira é a falta de referências. Meninas e mulheres negras precisam se ver como pessoas que podem ocupar esses espaços. É por isso que ações como a vinda da Nina da Hora à UFG, no início deste mês, são tão importantes. Ela falou sobre racismo algorítmico e humanidades digitais, e sua presença inspira outras meninas negras a perceberem que esse lugar também é delas. A quebra dessa barreira simbólica é o primeiro passo.

Que estratégias educativas e políticas públicas poderiam ser adotadas para ampliar a presença feminina — especialmente de mulheres negras — nas TICs?

É preciso criar ambientes inclusivos desde a escola até o ensino superior, garantindo a entrada de mulheres, especialmente negras, nas áreas de tecnologias da informação e comunicação. Existe uma barreira que se forma desde cedo, ainda na escola, que nos ensina que esse não é o nosso lugar. Por isso, a importância da extensão universitária também.

Um exemplo é o projeto de extensão da UFRJ coordenado pela professora Ana Lúcia Nunes, chamado Meninas e Mulheres Negras na Ciência. Ele leva oficinas e capacitações para escolas, voltadas a meninas negras na área das TICs. A universidade pode contribuir muito nesse sentido, levando formação para esses espaços. Além disso, é fundamental manter políticas já existentes, como o sistema de cotas, que possibilitam o ingresso desse grupo nos cursos das áreas tecnológicas.

 

m1Foto 2: Prof.ª Mariza em atuação na Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da UFG. Arquivo pessoal.

 

Acredita que a universidade tem cumprido seu papel na formação crítica e cidadã de jovens jornalistas quando o assunto é diversidade, ética e uso de tecnologias?

A universidade poderia estar cumprindo melhor esse papel, especialmente se esses temas fossem parte da base de todos os cursos. O que tenho visto, até o momento, é que esse trabalho é realizado por docentes específicos que têm interesse nesses assuntos. Eu sou uma dessas docentes e, por isso, levo esses temas para as minhas aulas.

Desde as turmas de ingressantes, quando ministro a disciplina de Produção de Texto Jornalístico I, já começo a dialogar com os estudantes sobre o uso de ferramentas como o ChatGPT para produção jornalística e os desafios éticos e críticos envolvidos nesse uso. No entanto, essa é uma iniciativa individual — minha e de alguns outros professores. Ainda não é uma política institucional. Acredito que a universidade deveria assumir esse compromisso de incorporar essas questões de forma estruturada nos currículos de graduação.

Poderia compartilhar alguma experiência marcante no ensino ou em projetos de extensão em que tenha percebido o impacto direto do seu trabalho na vida de estudantes?

Uma experiência marcante foi a publicação da reportagem sobre o aumento da presença de pessoas negras na UFG. O projeto OJU tem apenas seis meses, mas essa reportagem já gerou uma repercussão muito positiva. Foi republicada por outros veículos, como o Jornal Opção e a TV UFG, e foi muito significativa para os coletivos negros que atuam na universidade desde os anos 2000.

Ver que, em 2024, chegamos a esse ponto, com dados que demonstram a ampliação da presença negra na universidade, é algo muito gratificante. Recebi muitas mensagens de reconhecimento, inclusive de membros da Comissão de Heteroidentificação da UFG, porque o trabalho deles também é evidenciado nesse processo. Foi algo muito impactante, tanto para mim quanto para os estudantes que participaram da pesquisa.

Por fim, que mensagem gostaria de deixar para as meninas que sonham em ocupar espaços de protagonismo na comunicação, nas ciências e nas tecnologias?

Gostaria de dizer que nós, meninas negras, somos ensinadas a acreditar que precisamos ser dez vezes melhores para ocupar qualquer espaço. E isso, apesar de ser um fardo, também nos fortalece: nos dá a certeza de que podemos ocupar qualquer lugar que desejarmos.

Minha mensagem é: não desistam. Esses espaços pertencem a vocês, pertencem a nós. E nós estamos aqui, na universidade, esperando por vocês.

 

mFoto 3: Aula ministrada sobre jornalismo investigativo e o uso das tecnologias de busca. Arquivo pessoal.

 

Com sua trajetória marcada pela resistência, pela curiosidade intelectual e pelo compromisso com a transformação social, Mariza Fernandes reafirma que é possível – e urgente – ocupar espaços de poder no jornalismo, na ciência e na tecnologia a partir de uma perspectiva antirracista e ética. Sua atuação como educadora, pesquisadora e extensionista não apenas inspira novas gerações, mas também reconfigura as bases do que se entende por inovação no campo da comunicação.

Ao apostar na formação crítica de estudantes e na produção de conhecimento voltado ao enfrentamento das desigualdades, ela mostra que o jornalismo pode – e deve – ser uma ferramenta de justiça social. 

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