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Geografia além da sala de aula

No Dia do Geógrafo, o professor Alécio Perini, da Universidade Federal de Jataí (UFJ), destaca em entrevista ao Pátio da Ciência o papel estratégico da Geografia na compreensão dos desafios ambientais e territoriais do Brasil, ressaltando o uso de tecnologias, a importância da formação prática e a aproximação entre universidade e sociedade.

Texto por: Iasmin Feitosa

 

No dia 29 de maio é celebrado o Dia do Geógrafo, data dedicada a reconhecer a importância dos profissionais que se dedicam a compreender as relações entre a sociedade e o espaço. Para além dos mapas e das paisagens naturais, a Geografia é uma ciência essencial para entender os desafios ambientais, sociais e territoriais que afetam o nosso cotidiano. Para marcar esse dia no Museu de Ciências, buscamos ouvir quem vive e pesquisa a Geografia no ensino superior público brasileiro.

Conversamos com o professor Alécio Perini, da Universidade Federal de Jataí (UFJ), doutor em Geografia e pesquisador nas áreas de Geografia Física, Geotecnologias e Inteligência Geográfica. Além de atuar como docente, ele também ocupa um cargo na Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação da universidade, incentivando a produção científica em diferentes áreas do conhecimento. A trajetória de Alécio reflete um compromisso com a ciência aplicada à realidade brasileira, especialmente em tempos de crises ambientais e territoriais.

AL 1Foto 1: Professor Alécio Perini em momento de pesquisa. Reprodução arquivo pessoal.

 

A entrevista é um convite a refletir sobre o papel da Geografia na sociedade e sobre a necessidade de valorizarmos essa ciência desde a escola básica até a pesquisa universitária. No Dia do Geógrafo, ouvir a experiência e as ideias de um pesquisador como o professor Alécio Perini nos ajuda a compreender o quanto essa área do conhecimento é fundamental para enfrentarmos os desafios do presente e do futuro. E mostra como a universidade pública pode ser um espaço de diálogo entre ciência, território e transformação social.

IASMIN FEITOSA: Professor, na sua visão, qual é o papel da Geografia — especialmente da Geografia Física — na compreensão dos desafios territoriais enfrentados pelo Brasil hoje?

ALÉCIO PERINI: Há bastante tempo, a Geografia Física rompeu as amarras com o pensamento positivista, que levou à fragmentação do conhecimento. Trabalhamos em uma perspectiva holística e sistêmica, buscando compreender as relações entre sociedade e natureza em todas as suas nuances, o que torna o geógrafo um profissional único, com ampla capacidade de integração de conhecimentos e padronização de métodos e processos de pesquisa/trabalho.

Especializado na elaboração, processamento e análise de dados geoespaciais, o geógrafo é um profissional competente para a prospecção de cenários que servem de base às atividades de planejamento e gestão e, principalmente, para a tomada de decisões. Ainda, é o profissional mais capacitado para a elaboração e disseminação de produtos cartográficos, essenciais para o conhecimento e a gestão do território.

Esses conhecimentos são essenciais para compreender os desafios atuais do país e atuar no enfrentamento de problemas que afetam diretamente a qualidade de vida da população, como mudanças climáticas, deterioração dos recursos naturais, conservação da sociobiodiversidade, qualidade ambiental, desigualdades socioespaciais, entre outros.

Como a Inteligência Geográfica pode contribuir para o planejamento e a tomada de decisões em políticas públicas ambientais e agrícolas?

A Inteligência Artificial traz, cotidianamente, novas soluções tecnológicas que simulam a inteligência humana, mas não substituem o conhecimento e a prática empírica adquiridos ao longo da formação do geógrafo. Ela permite realizar atividades de forma autônoma, fundamentada em aprendizado de máquina, mas os algoritmos necessitam de inserção e validação constante de informações, que vão permitir o processamento de séries de dados mais volumosas.

Entendo que a Inteligência Geográfica é a chave para a compreensão de onde e como cada fenômeno interage com os demais, permitindo que pessoas, empresas e governos consigam dar respostas rápidas e tomar decisões sobre os principais problemas que afligem a sociedade. Aqui, ferramentas de geotecnologias incorporam algoritmos que reconhecem padrões espaciais e simulam cenários a partir de informações geograficamente referenciadas, auxiliando no trabalho diário do geógrafo.

Esse conhecimento permite agir de forma mais assertiva, por exemplo, na identificação de desmatamentos e áreas em desconformidade com a legislação ambiental, agilizando processos de fiscalização, aplicação de sanções, mitigação de impactos e recuperação dessas áreas. Em áreas agrícolas, permite monitorar de forma mais precisa o desenvolvimento e a produtividade das plantas, fornecendo subsídios aos técnicos de campo para corrigir problemas de forma mais pontual, como a fertilização e o uso mais controlado de venenos, reduzindo os impactos ambientais dessas atividades.

O senhor atua com agricultura de precisão. Poderia explicar como a integração entre tecnologia e geografia tem transformado a forma de produzir no campo?

Minha atuação em pesquisas na área de agricultura de precisão se limita à realização de testes de sensores remotos (por satélite ou câmeras embarcadas em drones), adaptação e validação desses sensores para a geração de índices de vegetação. Esses índices permitem, por exemplo, acompanhar o desenvolvimento das plantas, avaliar a eficiência de uso da radiação solar e o armazenamento de carbono, além de estimar a produtividade.

Ainda não conseguimos atuar diretamente na transformação da forma de produzir no campo, pois essas tecnologias não se sobressaem frente às variações de preço e outras questões impostas pelo mercado financeiro. No entanto, podem fornecer subsídios aos técnicos de campo e produtores para monitorar a eficiência do manejo, levando a um uso mais consciente de fertilizantes, venenos e outros insumos. Eu entendo que é possível produzir mais e com menor impacto ambiental investindo em tecnologias de monitoramento, o que traria efeitos diretos sobre a redução do desmatamento para abertura de novas áreas de produção. Mas ainda temos um longo caminho a percorrer.


A modelagem ambiental é uma ferramenta cada vez mais utilizada por pesquisadores. Quais são os principais avanços recentes nessa área e como eles têm sido aplicados no Brasil?

A modelagem ambiental se destina à prospecção de cenários, a partir da seleção e análise de variáveis de entrada e definição de técnicas de processamento dessas variáveis. Esses cenários podem indicar caminhos para agir antecipadamente e criar planos de contenção e políticas públicas, como, por exemplo, a criação de unidades de conservação, sistemas de alerta a riscos e desastres ambientais etc. Existe um grande número de pesquisas e metodologias desenvolvidas nas universidades brasileiras que permitem mapear e classificar áreas de risco, que poderiam, por exemplo, evitar boa parte das perdas registradas nas recentes inundações do Rio Grande do Sul ou se antecipar a tragédias de deslizamento de encostas, que são recorrentes no litoral brasileiro. Acredito que ainda falta uma maior aproximação entre o poder público e as universidades para aproveitar o grande capital intelectual que o Brasil possui.

Cito aqui o trabalho fantástico desenvolvido pela equipe do projeto MapBiomas, que fornece um mapeamento de boa qualidade do uso da terra e cobertura vegetal no Brasil, produzido com base em sensoriamento remoto, além de outros produtos, como monitoramento de focos de incêndio, superfície coberta por água, qualidade de pastagens etc. A maior parte desses produtos está disponível desde o ano de 1985, gratuitamente, constituindo uma variável de entrada importante para diferentes modelos, permitindo, por exemplo, modelar frentes de expansão agropecuária, prospectar a perda de vegetação nativa nos próximos anos, entre outras aplicações.

AL 2Foto 2: Infográfico dos dados de cobertura e uso da terra da Coleção 9 do MapBiomas para o Brasil. Reprodução.

 

Em sua opinião, quais são os maiores obstáculos para que a geotecnologia seja incorporada de maneira mais ampla nas ações de planejamento ambiental por parte do poder público?

Eu não vejo grandes obstáculos para isso. Atualmente, temos muitas ferramentas gratuitas à disposição dos usuários, vencendo um obstáculo que, há 10 ou 15 anos, estava vinculado ao custo dessas tecnologias. Os custos com equipamentos, computadores de alta performance e sistemas de armazenamento de dados também reduziram significativamente na última década. Existe, ainda, um grande número de profissionais qualificados disponíveis no mercado de trabalho, provenientes de cursos superiores em Geografia, Engenharia Cartográfica, Geoprocessamento, Análise de Sistemas, Ciência da Computação, entre outros, que poderiam formar excelentes equipes multiprofissionais.

Se as prefeituras municipais e os órgãos dos governos estaduais e federal possuíssem um setor de Inteligência Geográfica, com equipe multiprofissional para coleta, sistematização, processamento, análise e disponibilização de informações georreferenciadas, boa parte dos problemas relacionados ao planejamento e à gestão do território (incluindo a área ambiental) seriam sanados.

A Geografia muitas vezes é vista como uma disciplina distante do cotidiano. Como aproximar a produção acadêmica geográfica da população em geral?

Como geógrafo, eu não vejo que ela esteja distante do cotidiano. Encontramos a Geografia na previsão do tempo que vemos na TV ou recebemos em um aplicativo de celular, e quando realizamos um passeio em um rio, cachoeira ou parque. A Geografia está no noticiário que fala sobre o conflito tarifário entre EUA e China ou sobre os massacres recentes na Faixa de Gaza. Quando realizamos uma compra na internet e verificamos o rastreamento do pedido, onde foi produzido e como ocorreu a logística de distribuição, a Geografia está lá. Se abrimos o Google Maps para encontrar um endereço e nos deslocarmos pela cidade, a Geografia está presente.

Eu vejo que a Geografia está perdendo espaço gradativamente na matriz curricular do ensino básico, enquanto disciplina, e isso é um grande problema. Também percebo a Geografia desaparecendo no emaranhado de disciplinas eletivas em escolas de tempo integral. A aproximação entre a Geografia e o cotidiano das pessoas acontece, primeiramente, na escola. Também percebo que a universidade ainda está distante da comunidade, mesmo com o aumento numérico das ações de extensão nos últimos anos. Os cursos superiores precisam investir nessa aproximação com a comunidade, além de marcar uma posição mais firme em fóruns de discussão sobre educação básica, demonstrando a importância da Geografia para a formação cidadã e retomando seu espaço nos currículos. Aquela Geografia meramente descritiva ficou lá na década de 1970; temos muito a contribuir com a sociedade brasileira.

Considerando seu papel na Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação da UFJ, quais estratégias têm sido adotadas para fortalecer a pesquisa geográfica e sua aplicabilidade social?

Entendo que meu papel na PRPI da UFJ é institucional, e, assim, procuro incentivar as atividades de pesquisa e inovação igualmente nos 25 cursos de graduação e nos 15 cursos de pós-graduação da instituição. Para a área da Geografia, temos incentivado a participação dos docentes e servidores técnico-administrativos nos programas institucionais de Iniciação Científica e Tecnológica, editais públicos lançados pelo CNPq, FAPEG e FINEP, além de outras iniciativas institucionais, como o Desafio de Inovação, que, em 2025, está alinhado com os temas da COP30, e eventos científicos. Parte dos projetos de pesquisa do curso é desenvolvida em parceria com escolas da região, contribuindo com a educação geográfica e a aproximação da disciplina ao cotidiano dos estudantes.

Quais são os temas mais promissores e urgentes de pesquisa na Geografia Física brasileira atualmente?

Além da área de inteligência geográfica, com destaque para o uso de geotecnologias em estudos territoriais, percebo um aumento significativo em demandas e pesquisas na área de Climatologia Geográfica, considerando as recentes discussões sobre mudanças climáticas e mitigação dos impactos dessas mudanças, incluindo estudos sobre riscos ambientais associados às mudanças climáticas. Pesquisas com foco na qualidade ambiental, incluindo estudos sobre qualidade das águas, conservação dos solos, agroecologia e planejamento e gestão de unidades de conservação também têm ganhado espaço nos últimos dez anos.

AL 3Foto 3: #Charge: Mudanças Climáticas por Grupo Editores Blog, 22 de março de 2024. Reprodução.

 

Como o senhor avalia a formação dos estudantes de Geografia no Brasil no que diz respeito às novas tecnologias aplicadas ao território?

Neste ponto, temos uma questão sensível, que reside nas sucessivas recomendações para redução na carga horária dos cursos de graduação, tanto no bacharelado quanto na licenciatura em Geografia. Essa redução implica na necessidade de eliminação ou junção de disciplinas essenciais ao processo formativo. O cenário é ainda mais preocupante com a expansão dos cursos a distância, que eliminam a parte mais importante dos currículos: o aprendizado empírico, a prática de campo e a presença dos estudantes em laboratórios, projetos de pesquisa e ações de extensão. A vivência em campo e nos laboratórios dos cursos é essencial para a formação do geógrafo, e não podemos perder isso de vista.

Com relação à área de inteligência geográfica e à inserção de geotecnologias no processo formativo, vejo que tem ganhado espaço por ser um campo transversal na Geografia, importante tanto nas disciplinas voltadas para a área ambiental e de estudos territoriais quanto nos componentes curriculares da área de humanidades do curso. Não tenho informações de outras regiões do país, mas, pelo menos na UFJ, todos os estudantes do curso de Geografia que se destacam na área de inteligência geográfica e no domínio das tecnologias associadas à área estão conseguindo uma boa inserção no mercado de trabalho, principalmente em empresas de consultoria na área ambiental e do agronegócio. É um campo bastante promissor para os bacharéis em Geografia.

Por fim, qual mensagem deixaria para os futuros geógrafos e geógrafas que estão ingressando na área e se perguntam qual é seu lugar no enfrentamento das crises ambientais e territoriais que vivemos?

Estudem. Inovem. Se adaptem. Não tenham medo do novo. Vocês vivem em um mundo muito mais dinâmico do que o dos seus pais, ou mesmo do que eu vivi durante minha graduação nos anos 2000. Tecnologias que estavam na vanguarda do conhecimento há 15, 10 anos, hoje começam a se tornar obsoletas. É preciso se atualizar constantemente para se manter ativo e relevante no enfrentamento das crises e desafios dos novos tempos. A inteligência artificial jamais será capaz de substituir a mente humana e o conhecimento empírico, mas pode auxiliar de forma extraordinária em nossa prática profissional. Auxiliar, inclusive, na redução de nossa sobrecarga de trabalho. E não se esqueçam de viver.

A fala do professor Alécio Perini reforça o quanto a Geografia vai muito além da sala de aula e dos mapas escolares. Trata-se de uma ciência dinâmica, com aplicações concretas na vida das pessoas — da previsão do tempo ao planejamento urbano, da produção agrícola ao combate aos desastres ambientais. Em tempos de emergência climática e de crescente pressão sobre os territórios, o trabalho do geógrafo se torna ainda mais relevante.

Além de valorizar o conhecimento técnico e científico, a entrevista também chama atenção para a necessidade de aproximar a universidade da sociedade. Projetos de extensão, parcerias com escolas e a presença ativa dos cursos superiores nos debates públicos são caminhos fundamentais para mostrar que a Geografia está presente no cotidiano e pode contribuir para políticas públicas mais eficazes e sustentáveis.

Neste Dia do Geógrafo, fica o convite à reflexão: como podemos fortalecer essa área do conhecimento e garantir que ela ocupe o espaço que merece nas decisões que moldam o futuro do país? A resposta, como mostrou esta conversa, passa por educação de qualidade, investimento em ciência e incentivo à formação crítica e atualizada dos profissionais que pensam — e transformam — o território brasileiro.

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